CARIDADE
- Sidnei Sérgio Maciel

- 11 de nov.
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Atualizado: 11 de nov.
ENTRE A MISERICÓRDIA E A JUSTIÇA

“A caridade consciente é o bálsamo milagroso que pode confortar nosso dolorido coração. ” — V.M. Samael Aun Weor
Etimologicamente, caridade provém do latim caritas, derivado de carus, que significa “caro”, “querido” ou “amado”. Em sua essência, designa estima, afeto e valor, atributos que transcendem o mero sentimento humano, expressando uma vibração da consciência. No âmbito cristão-esotérico, a Caridade é compreendida como uma virtude teologal, isto é, uma força que manifesta o amor divino — o Agapē grego — em ação consciente.
Assim, amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo não é apenas um preceito moral, mas uma prática interna de unidade, onde o Ser reconhece o Ser em todas as criaturas.
É claro que, para cumprirmos verdadeiramente esses dois grandes mandamentos, é necessário antes ter trilhado um caminho de autoconhecimento, acumulando profunda compreensão e muitos padecimentos voluntários. Dizer tais palavras é fácil; vivê-las, porém, exige o árduo trabalho de eliminar de si os inúmeros agregados psicológicos que perturbam a mente e afligem o coração.
Esses agregados atuam segundo seus próprios desejos e caprichos, buscando sempre satisfazer suas vontades, jamais se colocam no lugar do outro. Cismam em não obedecer às leis, são infratores e vivem de acordo com seus princípios. Não sabem amar, apenas apegam-se e buscam prazer, vivendo para a realização de seus objetivos ilusórios.
De fato, o ego não ama a Deus, tampouco ama a si mesmo; e, se não é capaz de amar a si mesmo, muito menos poderá amar ao próximo.
Somente quando o ego é dissolvido, quando compreendemos as leis e eliminamos os nossos infratores e que alcançamos a síntese, permitindo que a regência de nosso mundo interno seja governada pelo nosso Real Ser.
Eis o momento em que o coração é purificado, tornando-se mais leve que uma pena, pois todas as penalidades já foram compreendidas, pagas e transmutadas. Nesse estado, conquistamos o domínio da mente, deixando-a em pleno silêncio, conectada diretamente e sem interferências com Buddhi, nossa Consciência, nossa Divina Mãe, alcançando assim a verdadeira Caridade.
Somente então passamos a ter domínio de nós mesmos, sendo capazes de amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. De outra forma, seria impossível colocar esses mandamentos em prática.
Aparentemente, ajudar a todos e sermos caridosos parece algo belo, encantador, simples e fácil para o ego. Contudo, enquanto não conquistarmos o domínio consciente da razão e da emoção, acabamos transformando a caridade em um grande problema.
Lembro-me de uma antiga canção que diz:
“O meu egoísmo é tão egoísta, que o auge do meu egoísmo é querer ajudar. ”
E, de fato, essa frase faz todo sentido enquanto não extrairmos o pensamento e o domínio das emoções e da razão, pois, agindo de forma dual e inconsciente, seguimos nossos próprios preceitos egóicos e métodos superficiais de análise. Carecemos da verdadeira clareza interior necessária para compreender que tudo, neste plano tridimensional, é dual e obedece à Lei da Ação e Reação.
Assim, reconhecemos que a Justiça atua incessantemente em conformidade com a lei, sem jamais falhar. Aquilo que julgamos como injustiça é, na verdade, a própria lei ajustando desequilíbrios, colocando cada elemento em seu devido lugar para que possamos aprender de forma prática.
Esta é, de fato, a razão de nossa presença neste mundo. Viemos a esta grande escola para trabalhar sobre nós mesmos. Ainda que creiamos que tudo está errado, que o mundo está perdido ou que a lei é corrompida, ela continua agindo com perfeita ordem e sabedoria.
A injustiça que pensamos enxergar é apenas uma face da moeda; se elevássemos nossa visão além dos opostos, perceberíamos que tudo se repete em ciclos compensatórios. O que antes semeamos retorna a nós em forma de reação, não como castigo, mas como oportunidade de aprendizado e regeneração.
A vida nos conduz, através da razão e das emoções, à experiência necessária para transmutar os antigos erros e vícios que carregamos ao longo de nossas existências, até que aprendamos, por fim, a agir com consciência, amor e equilíbrio.
Dessa forma, passamos a olhar o mundo de maneira totalmente diferente, além da luz da retina. Começamos a perceber a história em sua totalidade, e não apenas o acontecimento isolado de um dado momento. Pois, até que um fato se manifeste na matéria, há inúmeros pormenores ocultos que não vemos e acabamos ignorando devido à nossa identificação com os eventos, sem compreender que tudo retorna para sua devida solução.
Devemos, portanto, aprender a observar as coisas como um todo, e não apenas no instante da ocorrência. É certo que devemos viver no presente, o único momento em que o ego não atua, pois ele sempre está ausente, perdido entre as recordações do passado e as ilusões do futuro. Contudo, ao julgarmos uma situação, é necessário fazê-lo de forma consciente, reconhecendo que cada acontecimento traz em si o entrelaçamento de ações pretéritas e o esboço de um novo futuro.
O que anseio expressar é que toda situação carrega uma história por detrás de si. Precisamos compreender que o necessitado de hoje já foi, outrora, o abastado que não soube agir com caridade. Agora retorna para viver o outro lado da moeda, a fim de compreender e, quem sabe, transcender com esta atual experiência.
Há inúmeros exemplos que poderíamos citar, pois nada ocorre ao acaso. Tudo se manifesta como resultado de ações delineadas no passado, permitindo que colhamos, no presente, os frutos necessários à nossa própria lapidação.
Ao nos depararmos com qualquer cena, situação ou evento em que precisemos decidir algo, é necessário que analisemos com calma e discernimento. Muitos se encontram em circunstâncias aparentemente difíceis, atravessando tribulações que, à primeira vista, parecem injustas, pessoas castigadas, humilhadas ou portadoras de deficiências físicas ou mentais.
Ao observarmos tais dores, o ego tende a julgar que Deus não está agindo corretamente, que Ele permite o sofrimento dos necessitados. No entanto, é preciso compreender que tudo o que nos acontece é fruto de nossa própria inconsciência. Os acontecimentos retornam a nós para que despertemos, para que aprendamos a ver que tudo quanto nos sucede é causado por nós mesmos. E, da mesma forma, apenas em nós mesmos está a solução.
Muitos mestres passaram pela terra, e é notório que nenhum deles agiu de forma aleatória, salvando a todos indiscriminadamente. Mesmo realizando curas e obras de grande caridade, sempre o fizeram em conformidade com a vontade do Pai e com o merecimento e a fé daqueles que recebiam a ajuda:
“A tua fé te curou. ”
“A tua fé te salvou. ”
Não foi o mestre quem curou, mas a fé despertada no coração do discípulo que, por um instante, se conectou com o Cristo Íntimo.
Mas isso não significa que não devamos ajudar o próximo ou praticar a caridade. Apenas compreendamos que toda ação possui sua justa correspondência: se dou dinheiro, receberei dinheiro; se dou vestes, receberei vestes; se ofereço alimento, receberei alimento. Assim também, se compartilho ensinamentos, receberei ensinamentos e os méritos correspondentes ao terceiro fator da Revolução da Consciência.
Como diz o ditado:
“Não dê o peixe, mas ensine a pescar. ”
Entretanto, por estarmos adormecidos, muitas vezes acabamos ajudando o próprio ego, tanto o nosso quanto o do próximo, alimentando suas forças e dando-lhe energia para continuar a praticar os mesmos erros. Inevitavelmente, tais ações retornarão a nós, conforme a implacável Lei de Ação e Reação.
Os sofrimentos são instrumentos do aprendizado correspondente a cada indivíduo. Como bem se sabe, quando Deus deseja castigar o homem, concede-lhe abundância e distrações; mas quando quer ajudá-lo, retira-lhe muitas coisas, para que desperte e volte-se para dentro de si, livre das ilusões mundanas.
Devemos compreender, portanto, que prosperidade material nada significa diante de Deus. A única riqueza verdadeira é a espiritual, o ouro interno, conquistado através do segundo fator da Revolução da Consciência.
Assim, aprendamos a ver as situações da vida sob nova ótica. Ao observarmos uma lagarta dentro do casulo, esforçando-se em sua metamorfose, podemos, por ignorância, identificar-nos com sua dor e tentar ajudá-la, abrindo-lhe o casulo. Porém, ao fazê-lo, interrompemos o processo de sua transformação e acabamos por matá-la.
Da mesma forma, é preciso ter ciência e sabedoria para não agir movidos pela piedade cega ou pelo sentimentalismo egoico. Devemos ver com outros olhos, buscando compreender que tudo o que acontece é para o despertar da consciência.
Cada um de nós está exatamente onde deve estar, colhendo o que semeou e aprendendo o que necessita aprender.
Tendo consciência disso, estaremos então verdadeiramente preparados para agir e sermos caridosos com o mundo, mas sempre investigando as circunstâncias antes de intervir, para não nos tornarmos um obstáculo no caminho evolutivo do próximo, retirando-lhe o aprendizado que a vida, como escola, lhe proporciona para o despertar.
E lembremo-nos sempre das palavras do V.M. Samael Aun Weor:
“A justiça sem misericórdia é tirania; a misericórdia sem justiça é tolerância — complacência com o delito. ”

Se agimos simplesmente por impulsos, envolvendo-nos com os demais sem consciência, julgando ser correto ajudar, mas sem o devido equilíbrio entre Justiça e Misericórdia, acabamos causando mais desequilíbrio do que harmonia, mais transtornos do que soluções.
Reflitamos por um instante: se a caridade feita de forma inconsciente fosse realmente a solução, o mundo já estaria salvo, e muitos caridosos já estariam iluminados. Mas não é assim. De maneira inconsciente, nada se resolve. Não podemos alterar a Lei de Ação e Reação segundo a nossa própria vontade, isso é impossível.
Recordo-me de uma pesquisa realizada há alguns anos, a qual afirmava que, se todo o dinheiro do mundo fosse distribuído igualmente entre todas as pessoas, em cerca de dez anos ele retornaria às mãos daqueles que já o possuíam. Em outras palavras, tudo voltaria a se ajustar conforme as leis que regem a existência. O movimento circular da vida, que distribui os recursos e as circunstâncias de acordo com os méritos, dharmas e karmas de cada um.
Não podemos crer que simplesmente praticando caridade de modo superficial sanaríamos os problemas do mundo. Por detrás de tudo o que ocorre, há sempre a Justiça Divina atuando, servindo e equilibrando de acordo com as ações realizadas em tempos idos.
Olhemos ao nosso redor e meditemos sobre a Caridade. Vivemos em uma época em que os hospitais se multiplicam, os presídios se expandem, as clínicas se enchem e os abrigos se tornam necessários. O mundo parece transbordar de dor, miséria, violência e desespero. No entanto, paradoxalmente, nunca se falou tanto em “solidariedade” e “caridade”. As instituições florescem em cada esquina, as campanhas humanitárias se sucedem, e, ainda assim, a humanidade continua mergulhada no sofrimento.
Por quê?
Porque confundimos Caridade com sentimentalismo, ajuda com apego, Misericórdia com complacência.
Eis o dilema que poucos compreendem. A verdadeira Caridade não é fazer o bem por instinto ou emoção, mas agir em consonância com a Lei Divina, com compreensão e consciência.
A caridade cega nasce do ego. Muitos ajudam movidos pela culpa, pela vaidade, pela necessidade de sentir-se bons ou pela busca inconsciente de compensar erros passados. Essa caridade é mecânica, pois não emana da consciência desperta, mas do desejo de aliviar o próprio sofrimento interior.
Quando uma mãe superprotege o filho, impedindo-o de aprender com as consequências de seus atos, acredita estar sendo amorosa; mas, na realidade, está impedindo que ele amadureça. Da mesma forma, quando ajudamos alguém a escapar das provas que o destino lhe impõe, provas cuidadosamente traçadas pela Lei do Karma. Estamos, inadvertidamente, interferindo na Justiça Divina.
Há karmas que só se dissolvem com dor, esforço e compreensão. Impedir que alguém viva o que precisa viver é uma forma sutil de crueldade, pois priva o outro de crescer espiritualmente. A caridade sem discernimento pode converter-se em veículo do ego disfarçado de virtude.
A Caridade consciente é diferente. Ela nasce da sabedoria do coração, do centro emocional superior. Não é o impulso de “fazer o bem” mecanicamente, mas a manifestação da compaixão que entende as causas ocultas do sofrimento humano, sempre observa a situação antes de agir.
O verdadeiro caridoso não busca reconhecimento nem alívio para suas culpas. Move-se pela força do Cristo Íntimo, que une em si a Justiça e o Amor. Age com sabedoria, discernindo quando amparar e quando se retirar, pois sabe que cada indivíduo deve percorrer o próprio caminho e colher os frutos de suas experiências. Seu amor se manifesta tanto no gesto que acolhe quanto na renúncia compassiva que impede um mal maior.
O Universo é regido pela Lei. Tudo o que existe se equilibra entre Justiça e Misericórdia. A Justiça é o rigor da Lei, o Karma que retorna para ensinar; a Misericórdia é a oportunidade de compreensão e redenção.
Consciência é o ponto de equilíbrio entre esses dois princípios. Quando realmente despertamos consciência, podemos interceder em favor de outro, não por sentimentalismo, mas por méritos legítimos. Porque compreendemos as causas e os efeitos e sabemos como modificar o destino com sabedoria.
A verdadeira Caridade não é “dar coisas”, mas em ensinar o outro a adquirir a compreensão. Não é apenas oferecer pão ao faminto, mas ensiná-lo a encontrar o alimento do espírito. Não é apenas aliviar a dor, mas ajudar a transformá-la em consciência.
As boas intenções, quando desprovidas de lucidez, podem converter-se em grandes enganos. Quantos “ajudam” oferecendo vícios, sustentando preguiças, alimentando luxúrias ou encobrindo erros? Quantos pais, líderes religiosos ou terapeutas se julgam caridosos enquanto perpetuam a ignorância espiritual dos que os seguem?
O Cristo jamais foi complacente com o erro. Ele perdoava, sim, mas dizia:
“Vai e não peques mais. ”
A compaixão crística jamais se separa da exigência de transformação interior.
Servir conscientemente é um dos pilares do caminho iniciático. Mas servir não é se sacrificar cegamente; é atuar como instrumento da Vontade Divina. Quem desperta a consciência atua em harmonia com o Todo; compreende que cada ato, palavra e pensamento pode aliviar ou agravar o sofrimento coletivo.
Caridade real é o sacrifício pela humanidade, mas de forma sábia e equilibrada, sem sentimentalismos. Ela é o perfume do Cristo Íntimo manifestando-se através de um coração purificado, livre das intenções egoístas.
Aquele que é caridoso de coração, não ostenta sua bondade, nem busca recompensa. Age em silêncio, e sua ação é como o orvalho da manhã: discreta, mas vivificadora, assim como nos ensina o evangelho de Mateus 6:3,4:
“Mas, quando tu deres esmola, não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita; para que a tua esmola seja dada em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, ele mesmo te recompensará publicamente. ”
Tendo discernimento que o maior bem que pode fazer ao mundo é morrer em si mesmo, dissolver o ego e deixar que a luz atue através dele.
Enquanto os hospitais, presídios e abrigos se multiplicarem, será sinal de que a humanidade ainda não compreendeu o verdadeiro sentido da Caridade.
A Caridade onisciente é o reflexo da Alma que atua em harmonia com a Misericórdia e a Justiça. Somente ela pode curar o coração humano e restaurar o equilíbrio perdido.
Que cada um de nós se esforce por conquistá-la. Morrendo em si mesmo, nascendo do espírito e sacrificando-se pela humanidade, seguindo à risca os ensinamentos do Cristo:
"Se alguém quiser acompanhar-me, negue-se a si mesmo, tome diariamente a sua cruz e siga-me. - Lucas 9:23.



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